É verdade que a sociedade e suas convenções originam injustiças e desigualdade. Pois, afinal, o que é que se vê no mundo? Um nasce filho de um milionário, outro mal tem o que comer. Um nasce conde ou marquês, e tem o respeito de todo mundo, faça o que fizer, outros não tem condições de estudar, instruir-se – tornar-se mais lúcidos e inteligentes do que os outros.
As injustiças da natureza, vá: já não as podemos evitar. É normal que um nasça mais talentoso, forte ou bonito, e deve-se aceitar que, por esta ou aquela qualidade, ele seja superior pelo que a Natureza lhe deu. Mas por que submeter-se as qualidades postiças? Por que aceitar que uma pessoa tenha a riqueza, a posição social ou a vida facilitada, que só existe a custas de muita miséria? O anarquismo quer, em suma, evitar tudo isso.
A primeira ficção a ser destruída seria o Estado. Pois, enquanto ele existir, existirá o povo que só busca ser representado por legendas que inserem a dissonância sobre atos e fatos, mas que deveriam tornar a sociedade una e bem menos desigual. Assusta-me a burrice crônica exacerbadora da pseudocrítica às políticas plausíveis e viáveis do ponto de vista racional e humanismo por ter sido pensada pelo lado oposto da moeda.
Incapazes que são se enxergar enquanto parte do todo, negam que a vida em sociedade não se constitui sem a empatia e o respeito mútuo. No modelo anarquista, as relações mútuas sociais seriam regidas não por leis ou por autoridades auto-impostas ou eleitas, mas por mútua concordância de todos os seus interesses e pela soma de usos e de costumes sociais.
Porém, o único problema está na sua viabilidade. Primeiramente, como seria a transição da sociedade para este modelo? Esse intermédio só pode ser, portanto, um estado de preparação da sociedade para a sociedade livre. Pode ser material, ou apenas mental.
No campo da adaptação material, haveria a ditadura revolucionária. Porém, um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for a idéia a que o conduz, é materialmente só uma coisa – um regime revolucionário. Ora, um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposta à sociedade por uma parte dela – aquela que assumiu o poder. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e seu despotismo militar. O que saiu das agitações políticas em Roma? O império romano e seu despotismo militar.
Pois o que sobra é a transição mental: uma propaganda intensa, completa, absorvente das idéias do anarquismo. Ou seja, realização de cursos, palestras, debates, conferências, páginas na internet, e-mail, teatro, boletins, jornais, músicas, atos públicos, etc. Porém, a propaganda nos diz num âmbito teórico. Não significa que, necessariamente, as pessoas irão se organizar e lutar. Hoje, os grandes meios de comunicação e mesmo o crescimento das cidades, a fragmentação comunitária, o fundamentalismo religioso, dentre outros fatores, dificultam muito a propaganda em escala massiva. Lembro que, mesmo quando a propaganda anarquista, era muito forte, a transformação social não foi garantida.
E além do mais, o que um sujeito, sincero em seu anarquismo, poderia fazer, sozinho, para esse fim, que seria a sociedade livre? Só por ele, não poderia fazer a revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao país onde estava. Como combateria as injustiças sociais enquanto esse fim ainda não tenha sido alcançado? Não crê em nada que não seja natural, porém a idéia de “dever” era natural? Não é, pois esta idéia obriga-nos a sacrificar os seus instintos naturais, como a comodidade e o instinto de conservação.
Para, sozinho, escapar da mais importante das ficções sociais: o dinheiro, tornando-se livre da sua influência, da sua força, subjugando-o e reduzindo-o a inatividade, teria que satisfazer uma dessas duas hipóteses: ou ia pro campo comer raízes e beber água das nascentes, andar nu e viver como um animal, mas isso não seria combater, e sim, fugir do problema. Realmente, quem se esquiva de um combate não é derrotado por ele. Mas moralmente, é derrotado, porque não se bateu. Ou então, adquiria o dinheiro em quantidade bastante para não sentir a influência. Porém, sabe-se que a riqueza só existe em custas de muita miséria. E isso seria, claramente, uma prática egoísta, pois se adquire capital em busca de livrar-se da sua influência, mas com isso, ao adquirir mais do que o necessário para si, e não doá-lo para que outras pessoas possam usufruir do mesmo bem, não estaria combatendo as ficções sociais, mas fortalecendo-as. Ora, como disse no começo, a riqueza e a posição social são qualidades postiças e antinaturais.
"Mesmo uma sociedade de formigas, abelhas e chimpanzés há uma norma vigente, cada individuo tem um papel social e trabalha para a comunidade, depois para o próprio bem. Se os humanos não tivessem leis, grupos pequenos se reuniriam buscando a defesa em comum e elegeriam um patrono que tomasse conta deles, ou seja, depois do anarquismo viria o feudalismo, depois a noção do Estado e ficaríamos nessa roda."
Bibliografia:
O Banqueiro Anarquista - Fernando Pessoa;
Algumas Condições da Revolução - Mikhail Bakunin
@diogo (formspring)
Concordo plenamente pela exclusão da via revolucionária para o anarquismo. Mas não acho que a via mental seja inviável. A questão é que se tem uma idéia de tempo muito curta para o alcance das metas. Isto é empreendimento para centenas de anos. E uma luta perseverante e incansável ao longo de dezenas de gerações que não vão usufruir do resultado de seu trabalho. Mas se quisermos que a humanidade se torne uma espécia justa e que viva em uma sociedade harmônica, fraterna, próspera e feliz para todos, e não só para alguns, temos que trabalhar. E a solução está na educação, no exemplo e na propaganda. Incansável, paciente e perseverante por séculos a fio. Dizer que o homem é instintivamente preguiçoso e cobiçador não é verdade. No homem coexistem inclinações para o bem e para o mal. Há pessoas que se deixam levar para um ou para outro dos lados. o caminho do bem é mais difícil, sem dúvida. Ainda mais se não se tem a recompensa do céu e se sabe que o malvado que se safar vai ficar por isso mesmo, pois não há inferno para castigá-lo. Mas a educação filosófica tem que fazer ver à juventude de que a felicidade global só se alcançará pela renúncia a levar vantagens pessoais às custas dos otários. E essa educação filosófica não tem que ser dada só nas aulas de filosofia. Tem que perpassar todo o ensino, nos "temas transversais", como a eduação ambiental e a sexual (aliás, pessimamente abordadas. Professores que sejam anarquistas têm que encontrar um jeito de colocar suas posições perante as turmas. Eu tenho feito isso provocando debates em aulas de história e filosofia em que me convido. Outra coisa é escrever na internet e em jornais e revistas. Falar em rádios e televisões. Sempre, sempre, sempre. Durante 100, 200, 300, 400, 500, 600, 700 anos ou mais. Dar o exemplo trabalhando de graça para projetos comunitários. Resolver os problemas da rua por conta dos próprios moradores, deixando a prefeitura de lado. Plantar hortas comunitárias, ensinar artesanato, informática, o diabo a quatro. Tudo de graça, sem receber e nem pagar ninguém. Fazer o máximo de coisas possíveis à margem da lei (mas não contrariando-as, para não ser preso, exceto em situações críticas, quando vale a pena ser preso por desobediência civil). Formar famílias sem o casamento (isso já está ficando comum, mas virar regra geral). Desfazer-se de todos os bens em vida, para não deixar herança. Não aplicar dinheiro em poupança nem em coisa nenhuma. Gastar tudo. Se ficar pobre, ficou. Se morrer, morreu. Em suma, há muito o que fazer pelo anarquismo. Apesar de contráditória, vale a pena entrar para a política para propor leis cada vez mais anarquistas.
ResponderExcluirWolf Edler,
ResponderExcluirSinto que você está sugerindo uma construção de uma sociedade unilateral e mantê-la sem leis e normas. Não acredito que seja possível.
Ao influenciar ao homem, ao adestrá-lo convencendo-o a se inclinar para esse ideal, este tende a um declínio do tipo homem, provocando seu apequenamento, de modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo. O homem que se deixa ser influenciado pela propaganda massiva que diz "anarquismo é correto", "anarquismo é a solução", não será nobre, pelo contrário, será fraco e submisso, no que Nietzsche chamaria de 'escravo'. Sendo assim, nunca poderia ser autônomo, como seria o ideal que todos fossem.
Não é apenas o meio que influencia o homem, mas o homem também influencia o meio. Mesmo se construa a sociedade da maneira correta, os crimes não desaparecerão e nem todos os homens se tornarão justos.
O dever não é natural pois não temos o conhecimento intuitivo se uma coisa é certa ou errada, boa ou má, bela ou feia etc. Não nascemos bons, mas por meio da reflexão e da aprendizagem, podemos vir a ser. Ora, oque é dever? É submeter-se a vontade de outras pessoas.
Na sociedade anarquista, ainda, mesmo não havendo normas e leis, pois se supõe que todos busquem o bem e a verdade, haveriam sim obrigações. Obrigações negativas. Obrigações imorais e anti-sociais, ou que sacrifiquem a liberdade das pessoas, são proibidas, ex: obrigação de não se casar, de não trabalhar, de não ter religião, etc. Oque aconteceria se alguém violasse a obrigação negativa? Nada, pois violaria outra obrigação negativa. A sociedade estaria desarmônica e não se poderia fazer nada.